Autocrítica: O desafio que a igreja tem evitado

O Brasil caminha para se tornar um país de maioria evangélica. Estudos apontam que, no máximo até 2049, essa maioria se concretizará. Se esse crescimento é saudável, isso já é outra discussão — uma discussão necessária, mas da qual muitos crentes fogem. Ser maioria numérica é realmente relevante para a Igreja de Cristo no Brasil? A frase clichê “qualidade é melhor que quantidade” pode ser uma verdade que estamos negligenciando. Creio que uma autocrítica, por parte dos evangélicos, seria uma ferramenta valiosa para que esse crescimento fosse pautado na qualidade das igrejas e dos cristãos que estão sendo formados nessas comunidades. Mas, se há algo com que o evangélico comum tem dificuldade em lidar, é com a crítica — seja ela externa ou interna — e, por incrível que pareça, a crítica interna se apresenta como a maior crise entre os crentes protestantes no Brasil.

No caso das críticas externas, na maioria das vezes, a comunidade evangélica parece simplesmente ignorá-las. A meu ver, isso é um erro grotesco. Geralmente, um olhar de fora aponta para problemas que quem está por dentro não consegue enxergar. Ouvir comentários que, por vezes, nos incomodam deveria nos levar a entender melhor nossa fé e saber defendê-la com sabedoria. Esse exercício nos faz crescer, aprender mais sobre nós mesmos e, muitas vezes, buscar melhorar em pontos nos quais realmente estamos falhando — pontos que acabam trazendo dificuldade para que os de fora nos entendam e compreendam nossa fé. Saber lidar com os de fora é, de fato, muito importante, pois foi para isso que a Igreja foi chamada: para alcançar os de fora.

O meio evangélico é muito plural. Há muita diversidade no ser evangélico. Existem aqueles que batizam os filhos pequenos dos membros, e outros que só batizam jovens e adultos. Existem os que aceitam o pastorado feminino e outros que entendem que o ofício pastoral é reservado apenas aos homens. Há divergências nas manifestações dos dons espirituais e muitas outras dentro do espectro evangélico protestante. Esses exemplos citados são os chamados pontos secundários da fé. Críticas e questionamentos dentro da própria comunidade evangélica também devem ser ouvidos, entendidos e respondidos com amor e sabedoria.

Também precisamos entender que nem todas as comunidades que se dizem “evangélicas” ou “protestantes” são, de fato, aquilo que afirmam ser. É necessário estabelecer alguns limites; alguma forma de cercado deve existir dentro das diferentes linhas de compreensão da fé. Esses limites são essenciais para que possamos entender o que cada comunidade realmente crê. Para que igrejas sejam consideradas irmãs dentro do movimento evangélico, elas precisam professar em comum os pontos primários da fé, como, por exemplo: a Trindade; o nascimento virginal de Jesus através de Maria; Jesus sendo plenamente Deus e plenamente homem; a salvação somente pela fé em Jesus Cristo; e a Bíblia como a única Palavra inerrante de Deus. Existem outros pontos, mas creio que esses são os essenciais. Se alguma comunidade que se diz evangélica nega algum desses fundamentos, ela não pode ser considerada uma igreja irmã. Se, por exemplo, uma dita igreja afirma que Jesus não é Deus, então esse cercado precisa ser alto o suficiente para separar essa comunidade das demais. O diálogo e o respeito devem existir, mas também deve ficar claro que não somos irmãos da mesma fé. Esses pontos primários da fé devem ser usados como critério tanto para quem tem a mesma fé quanto para quem não tem. Já os pontos secundários são apenas aspectos que separam as denominações, mas que não impedem que elas sejam irmãs na fé. Nesses pontos secundários, as cercas devem ser de um tamanho que permita visualizar seus limites, mas não tão altas — de modo que, acima delas, seja possível estender as mãos entre as comunidades.

Dentro desses pontos secundários, podem (e devem) existir críticas e questionamentos de uma denominação para outra — e isso não pode ser ignorado. Por exemplo, um membro da Assembleia de Deus pode questionar um presbiteriano sobre as manifestações dos dons espirituais, ou vice-versa, e ambos devem refletir sobre a questão levantada e saber responder conforme sua tradição teológica. Isso também revela outro problema: muitos evangélicos não conhecem a própria doutrina da igreja que frequentam. Conhecer a doutrina da sua própria comunidade é fundamental para compreender por que você está ali, além de permitir comparar essa doutrina com as Escrituras e ter fundamento para avaliar se faz sentido ou não aquilo que sua comunidade crê.

O lema da igreja protestante pós-Reforma é Ecclesia Semper Reformanda, termo em latim que traz a ideia de que a igreja nunca está plenamente reformada — precisa submeter-se constantemente às Escrituras. Portanto, as questões secundárias nunca estão plenamente fechadas; sempre há espaço para críticas e reformulações.
Espero que os cristãos aprendam a exercitar a autocrítica e a ouvir atentamente as críticas que vêm de fora. Talvez assim consigamos oferecer uma resposta relevante a uma sociedade tão perdida em suas próprias certezas.

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